Inteligência artificial: em busca do cálice sagrado
“As mudanças são inevitáveis, e a disrupção que elas causam geralmente traz tanto inconveniências quanto oportunidades” — Robert Scoble
Disrupção geralmente se refere a uma mudança importante, que interrompe o curso normal de processos já estabelecidos. Essas mudanças são sempre acompanhadas de incertezas, repúdio, animação e euforia — essas são as diversas faces da inovação.
Mas os momentos em que fato ocorrem mudanças no paradigma da sociedade são raros: as caravelas no século XV, as ferrovias no século XIX, os automóveis no início do século XX, a Internet no final dos anos 90 e começo dos anos 2000, entre tantas outras ao longo dos 200 mil anos de humanidade.
Como em uma corrida pelo ouro, as inovações atraem tanto empreendedores quanto investidores, entretanto, ao contrário do que aparenta, essa é uma das tarefas mais árduas de se obter sucesso.
Olhando para uma das últimas revoluções, a internet, tivemos um efeito de “exuberância irracional” nos mercados, acarretando a “bolha das dotcom”.
Diversas empresas ligadas à internet tiveram uma tremenda valorização seguida por forte desvalorização ao longo do ciclo e, se pararmos para refletir, só tivemos a consolidação das empresas que de fato “venceram” na onda da internet na última década.
Empresas como o Google (Alphabet), que só fez seu IPO em 2004, anos depois da bolha estourar; o Facebook (Meta), que só foi fundado em 2004; a Netflix, que possibilitou a disseminação do streaming.
Apesar desses exemplos de empresas muito bem-sucedidas, tivemos diversas empresas que ficaram pelo caminho.
Com IA será diferente? Teremos investidores sendo mais racionais e nos permitindo achar boas oportunidades em meio a toda a expectativa?
Para responder a essa pergunta, gosto bastante da seguinte analogia: vamos supor que alienígenas chegaram à terra e se encantaram com o lápis grafite. Uma tecnologia que permite escrever em objetos sem a necessidade do uso de produtos líquidos. Esses alienígenas querem comprar o máximo desses lápis possíveis.
Mas não é apenas uma pessoa/empresa envolvida no processo de criar o lápis.
Para que o lápis seja produzido, é necessário madeira. Para que a madeira seja obtida, uma serra é necessária. Para que a serra seja produzida, é necessário que tenhamos aço, que, por sua vez, precisa do minério de ferro. Não apenas isso, precisamos de grafite, borracha, alumínio, entre tantas outras coisas.
O aumento drástico da demanda causado pelos alienígenas surtiria efeitos ao longo de toda uma cadeia logística, envolvendo milhares de pessoas e diversas empresas. Não teríamos apenas uma “vencedora” da loteria que se beneficiaria da boa relação com os amigos alienígenas.
Com certeza, teríamos diversas empresas que enfatizariam que elas vendem os lápis para chamar a atenção de empreendedores e investidores na jornada atrás do cálice sagrado ou do bilhete de loteria, por exemplo, papelarias seriam alvos de investidores fazendo propagandas como “aqui temos lápis!”.
O ponto não é necessariamente acertar qual será o Google/Amazon/Facebook/Netflix da Inteligência Artificial, mas sim conhecer toda a cadeia por trás dessa tecnologia para que, desse modo, possamos achar distorções e assimetrias favoráveis para investir.
Vamos mergulhar um pouco nessa cadeia logística que possibilita que a Inteligência artificial faça parte do nosso cotidiano. Começando de cima para baixo.
Sumário
- O que é Inteligência Artificial e quem a desenvolve
- Large Language Models (LLM): como funcionam e onde estão
- Computadores, chips e o centro das atenções
- “Real Men Have Fabs” — Jerry Sanders, fundador da AMD
- O telescópio invertido
- Juntando as peças
O que é Inteligência Artificial e quem a desenvolve
Inteligências Artificiais são programas e ferramentas de computador que têm o poder de pensar e tomar decisões, formular respostas ou gerar produtos finais complexos, que precisam de uma forma de inteligência por trás. Hoje, nós já participamos e somos influenciados pelas IAs diariamente.
O modelo de sugestão das plataformas de streaming, por exemplo, Netflix, Spotify, YouTube, utiliza os padrões de consumo dos usuários como informação.
Elas têm algoritmos que processam essa informação, entendem quem você é, pesquisam em uma base de dados com todos os usuários, traçando padrões similares de consumo e gerando cálculos probabilísticos. Assim, toda vez que você abre uma dessas plataformas de streaming, você vê sugestões alinhadas com as últimas coisas que você viu, sobre assuntos que você gosta.
Nós éramos passageiros dessa tecnologia, nos beneficiávamos sem saber, mas não tínhamos ciência disso. No entanto, as IAs estão cada vez mais acessíveis e podemos ter participação ativa na utilização delas.
As IAs generativas começam a fazer parte do cotidiano de diversas pessoas e diversas profissões.
Para quem não é familiar com o tema, (IAs) Generativas são um tipo especial de IA que tem a habilidade de criar algo novo de acordo com o que você pede. Em vez de apenas responderem a perguntas ou reconhecerem padrões, elas podem gerar conteúdo que nunca existiu antes. Isso pode incluir textos, imagens, músicas e até mesmo vídeos.
Hoje, os principais exemplos são as IAs generativas de texto, como o ChatGPT, da Open AI, o Bard, do Google, ou o Bing, da Microsoft. Você pede, ela processa a informação e faz o que você pediu. O processo de geração é possibilitado graças aos Modelos de Linguagem Grande (em inglês, “Large Language Models” ou LLM).
Large Language Models (LLM): como funcionam e onde estão
Os LLMs são basicamente modelos de computador treinados muito bem para que saibam qual é a “próxima palavra”. Isso significa que o que eles fazem é basicamente acessar bases de dados gigantescas, processar essas informações e com isso preencher lacunas com palavras que fariam sentido diante do que foi proposto.
Para isso, os LLMs são treinados. Isso é basicamente alimentar o modelo/programa com diversos textos, artigos, sites, livros, e muito mais. Eles aprendem a reconhecer padrões de linguagem, gramática e até mesmo nuances contextuais.
Uma vez treinado, o LLM é capaz de entender o que as pessoas estão escrevendo e dizendo. Graças a isso, eles são capazes de não só criar textos, mas também de realizar tarefas.
Um exemplo para ilustrar como o ChatGPT poderá ser usado na sua vida no futuro são os plug ins (adições). O Instacart, por exemplo, é um aplicativo de compras de supermercado online — inclusive, a empresa foi listada recentemente no mercado americano.
Basta você pedir ao ChatGPT que ele é capaz de realizar uma compra de mercado para você. “Ah, mas não seria mais simples apenas ir ao Instacart/ semelhantes e fazer o pedido?”
Imagine que você quer receber amigos em casa e gostaria de preparar um prato específico. Você pode pedir ao ChatGPT a receita e já emendar uma solicitação para que faça um pedido do Instacart com os ingredientes necessários. Além disso, o mesmo processo pode ser usado para programar uma viagem, usando o plugin da Expedia. Sem dúvidas, no futuro, teremos diversas outras opções.
Essa é a camada digital de toda a cadeia logística por trás da IA, aqui estão os semelhantes ao Google, Facebook, Netflix: empresas que poderão fazer uso da inteligência artificial, assim como as companhias citadas fizeram uso da internet.
Traçando um paralelo com a Internet, serão grandes vencedoras as empresas que desenvolvem usos da IA para facilitar ou resolver problemas de bilhões de pessoas. No entanto, a tarefa de identificar quais serão é como tentar acertar as vencedoras da internet nos anos 90. Praticamente impossível. É por isso que esse setor é o que menos me anima hoje.
Agora, para que as LLMs sejam possíveis e acessíveis a todos, precisamos de estruturas. Essas estruturas são os Data Centers. Como os modelos de linguagem requerem um volume de dados gigantesco, são necessárias estruturas enormes com a capacidade de armazenar e processar dados.
Os Data Centers ou, em português, “Centro de dados”, são instalações físicas onde são armazenados, gerenciados e processados grandes volumes de dados.
Nesse segmento, atuam empresas como a AWS (Amazon Web Services), Microsoft Azure, Google Cloud, Meta, Equinix, Digital Realty entre outras.
Com a introdução da Inteligência Artificial para o uso do varejo (nós, meros mortais), a demanda por capacidade computacional nesses Data Centers aumentou muito, além da maior necessidade de capacidade diante da complexidade dos LLMs.
Apesar de ser mais claro, nessa ponta da cadeia, quais players estão envolvidos, armazenamento de dados é uma commodity. Ou seja, a briga aqui será por eficiência, pois a capacidade computacional todas vão poder comprar.
Computadores, chips e o centro das atenções
Se a introdução de Inteligência Artificial generativa vai resultar no aumento do uso de dados, obviamente isso acarreta uma maior necessidade de computadores, mas não são computadores como os que usamos no nosso dia a dia. São os famosos Servers (Servidores).
Esses Servers são computadores super poderosos, projetados especificamente para armazenar, processar e gerenciar dados, dispositivos e sistemas de redes — às vezes, até dezenas de milhares deles; são a força motriz por trás de serviços, negócios e entretenimento online.
São essenciais para que sites com muitos dados (como o de um streaming) sejam hospedados e consigam processar a carga de trabalho intensiva para seu funcionamento. Isso vai muito além do que um computador normal é capaz de fazer.
Nessa frente, temos uma maior distribuição geográfica dos principais players do mercado.
Na lista das dez maiores produtoras de servers de acordo com o site history-computer, temos empresas dos EUA, China e Japão.
Além dos servers, os data centers também requerem dispositivos de memória, equipamentos de rede, sistemas de ventilação, processadores de energia ininterruptos, entre outros hardwares e softwares que são necessários para seu funcionamento.
Mas no centro de tudo e o que de fato possibilita o funcionamento dessa cadeia são os chips produzidos pelas empresas de semicondutores.
(Aqui cabe um adendo dizendo que caberia uma news inteira apenas para abordar os tipos de chips e quais as funções de cada um).
De forma simplificada, os chips podem ser categorizados a partir do tipo de ICs (integrated circuits, ou circuitos integrados) que eles utilizam. As quatro principais categorias são chips de memória, microprocessadores, standard e SoCs (sistemas complexos em um chip).
Como estamos lidando aqui com computadores (megacomputadores), as principais categorias de ICs são os CPUs (que é um microprocessador) e os GPUs.
Um CPU (unidade de processamento central) é um tipo complexo de IC, que consiste em milhões ou bilhões de transistores.
Os transistores nada mais são do que dispositivos semicondutores (materiais que têm capacidade de amplificar ou alterar sinais elétricos). Esses transistores são compostos por três camadas de materiais que são semicondutores, sendo o principal o silício (é daí que vem o nome Vale do Silício).
Os CPUs são muito úteis para computadores, tablets e aparelhos do dia a dia. Eles são muito bons em fazer “um pouco de tudo”.
Nesse segmento, temos dois tipos de empresas que dominam o mercado.
O primeiro grupo são as empresas que usam a arquitetura de desenho de chips x86, comum para computadores de uso casual, mercado que a Intel e a AMD dominam.
Inclusive, foi graças a essa arquitetura proprietária da Intel que a companhia se tornou a potência dos anos 90 em semicondutores. No entanto, foi justamente por ter se acomodado como a potência do modelo x86 e por dominar o mercado de computadores que a empresa perdeu a grande revolução tecnológica dos anos 2000: o celular.
O segundo tipo são os microprocessadores usados para celulares, que utilizam uma tecnologia/arquitetura diferente da de computadores. Nos anos 2000, a Intel subestimou o poder que smartphones teriam no mundo e perdeu a chance de se tornar fornecedora de ninguém mais ninguém menos que a Apple, logo quando a empresa lançou o iPhone.
Para celulares, a arquitetura usada para o design dos chips é a ARM. Aqui temos a ARM, empresa inglesa que foi listada no mês de setembro no mercado americano, e temos a Qualcomm, empresa que fornece os microprocessadores para o iPhone hoje (até 2026).
Eu sei… é complexo e maçante, mas isso tudo vai servir para que possamos entender o porquê de as empresas abaixo terem se comportado desta forma em 2023:
Por fim, temos os GPUs e por que a Nvidia deu um baile nas demais empresas que produzem chips.
Os GPUs, unidades de processamento gráficas, são úteis para processamento de gráficos e para algo chamado de tarefas computacionais paralelas.
É justamente por isso que a Nvidia é o centro das atenções em 2023. A empresa é especializada no design de GPUs. Inicialmente um mercado voltado para jogos online, mas que expandiu muito por conta dos modelos LLM que usam processos de computação paralela.
Ou seja, a boa performance das ações da Nvidia em 2023, assim como os ótimos resultados que a empresa vem apresentando (comento AQUI), deve-se aos tipos de chips que a empresa se especializou em DESENHAR.
“Real Men Have Fabs” — Jerry Sanders, fundador da AMD
A ênfase acima em “desenhar” é justamente porque é isso que a Nvidia faz. Ela não produz seus chips, apenas os confecciona.
Dentro da indústria de semicondutores, podemos classificar as empresas em 3 categorias:
Integrated Device Manufacturers (IDMs): essas empresas fazem o design e produzem seus próprios chips. Entre elas, Intel e Samsung.
Fabless: empresas focadas apenas no design de seus chips. Aqui estão empresas como a Nvidia, Qualcomm e AMD.
Foundries: empresas que são grandes fábricas terceirizadas que montam os chips de empresas fabless. Nessa lista, temos a TSMC e a GlobalFoundries.
A grande ironia aqui é que, nos anos 90, um dos fundadores da AMD cunhou essa infeliz frase (pegou mal na época e o tempo não o perdoou) de que “homens de verdade têm suas fábricas”. A própria AMD separou seu negócio de montagem de chips do negócio de design.
A questão é que é extremamente difícil para as empresas conseguirem ter as duas coisas. A Samsung e a Intel são raras sobreviventes que fazem ambas as coisas.
Essa dificuldade se deve ao alto grau de investimento necessário para se manter uma fábrica com tecnologia de ponta para a montagem desses chips.
Foi justamente assim que Morris Chang revolucionou por completo a indústria de semicondutores.
Chang é o fundador da TSMC, empresa taiwanesa que monta os semicondutores de outras empresas (por exemplo, da Nvidia). A grande sacada dele foi perceber que havia muitas empresas capazes de fazer os designs de chips, mas que não possuíam o capital para investir bilhões de dólares em fábricas.
Assim, ele se tornou o “montador” de todas as marcas. Uma empresa de montagem de chips que não iria competir com seus clientes (caso da Intel e da Samsung).
Até pouco tempo atrás, Buffett tinha uma posição na companhia, mas ele desfez a sua posição por conta dos problemas geopolíticos envolvendo Taiwan e China. E muito do interesse da China em Taiwan passa pelo capital tecnológico que a TSMC possui.
O telescópio invertido
Poderíamos mergulhar até o nível das commodities como ouro e outros metais envolvidos no processo inteiro que possibilitam a existência de IA em nossas vidas, mas o último ponto que queria comentar é sobre como a TSMC, Intel, Samsung e GlobalFoundries produzem os chips.
Após as empresas que fazem o design dos chips terem o desenho completo, esses “mapas” são entregues para as foundries montarem os chips. O processo é extremamente controlado. Não pode haver um grão de poeira dentro dessas fábricas. Funcionários precisam utilizar equipamentos e vestimentas especiais para entrar no perímetro de produção.
O que de fato cria os chips são as máquinas de litografia. Esse foi o processo que nos permitiu diminuir significativamente o tamanho dos chips, ao mesmo tempo em que aumentamos exponencialmente a quantidade de transistores dentro deles (a famosa lei de Moore).
O processo é utilizar uma máquina, como a da imagem acima, para disparar raios EUV (ultravioletas extremos) sobre um wafer (placa) de silício, com o design dos chips. Onde a luz toca, são desencadeadas reações químicas que possibilitam que os circuitos dentro dos chips sejam “funcionais” e se tornem transistores, sendo capazes de amplificar e captar sinais elétricos.
Essas máquinas são extremamente importantes no processo e são muito caras. Elas chegam a custar US$ 300 milhões. Hoje, uma única empresa na Holanda domina esse mercado: a ASML.
Juntando as peças
Temos aqui as máquinas que são capazes de criar os chips.
Além disso, temos as empresas que compram as máquinas para montar os chips das empresas que os desenham.
Esses chips possibilitam que empresas tenham computadores poderosos, capazes de processar uma carga gigantesca de dados, que são usados para alimentar os LLMs. Os LLMs são a base para que a Inteligência artificial funcione.
Isso nos dá uma dimensão melhor de tudo que envolve IA. Assim como o lápis, não são apenas as papelarias que os vendem que podem se beneficiar.
Por enquanto, não recomendamos nenhuma dessas empresas. Entendemos que dentro dessa cadeia logística existem oportunidades, contudo nunca são tão óbvias quanto as manchetes de “veja as melhores empresas de IA”. Não mergulhe de cabeça em um mercado novo atrás do cálice sagrado.
Estamos sempre estudando e buscando conhecimento. O futuro passará com certeza por essas empresas. Em breve, quem sabe, poderemos ter alguma grande novidade.
Conhecimento liberta.