O reconhecimento de vínculo empregatício entre o iFood e seus entregadores pela 14ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT2) marcou um novo capítulo em uma disputa judicial que se arrasta desde 2019.

A decisão reacende debates sobre segurança jurídica e regulamentação do trabalho por aplicativos.

Para contextualizar, elaboramos uma linha do tempo detalhada com os principais acontecimentos desse caso e outras decisões semelhantes envolvendo plataformas digitais.

Sumário

Como funciona o modelo de trabalho no iFood?

O iFood opera principalmente sob dois modelos de entrega:

  • Entregadores independentes ("nuvem"): trabalhadores autônomos que se cadastram diretamente na plataforma e têm total liberdade para definir dias, horários e entregas.
  • Operadores logísticos: empresas terceirizadas que empregam entregadores, sendo responsáveis pela gestão de suas operações.

A plataforma funciona como intermediadora entre restaurantes, consumidores e entregadores, oferecendo tecnologia para facilitar as transações.

É essa relação que tem gerado intensos debates sobre a natureza do trabalho realizado pelos entregadores

Alguns defendem que os entregadores que utilizam o aplicativo iFood têm liberdade para decidir onde, quando e como trabalhar, além de escolher quais entregas realizar, o que afasta elementos essenciais para a configuração de vínculo empregatício. Outros argumentam que, apesar dessa autonomia aparente, os entregadores estão sujeitos a normas e controles da plataforma, o que caracteriza a subordinação e, portanto, o vínculo empregatício.

Linha do tempo: a disputa judicial entre iFood e MPT

2019 – Início da controvérsia

A Ação Civil Pública foi movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) em outubro de 2019, com base em autos de infração e denúncias contra o modelo de trabalho do iFood. O objetivo era reconhecer o vínculo empregatício entre os entregadores e a plataforma.

2020 – Primeira decisão judicial

A 37ª Vara do Trabalho de São Paulo, sob a relatoria da juíza Shirley Escobar, decide contra o vínculo empregatício.

A sentença afirmou que os entregadores possuem autonomia no exercício de suas atividades, descaracterizando os requisitos de subordinação, continuidade e pessoalidade.

2021 – Nova sentença mantém decisão contrária ao vínculo

A juíza da primeira instância reafirma sua posição, argumentando que o modelo de negócios do iFood é inovador e baseado em tecnologia, o que o distancia do modelo tradicional de emprego previsto na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

2023 – STF decide pela inexistência de vínculo empregatício em plataformas

Em decisão unânime, a 1ª Turma do STF declara que trabalhadores de aplicativos, como Uber e iFood, não possuem vínculo empregatício. A decisão cria um precedente importante e fortalece o entendimento de que essas plataformas operam como mediadoras de serviços.

2024 - Reconhecimento do vínculo empregatício pelo TRT-2

Em novembro deste ano, o iFood solicitou entrada como amicus curiae (amigo da corte) no STF em um caso que discute o vínculo empregatício em plataformas digitais (Tema 1291), argumentando que a decisão terá impactos diretos no setor de delivery.

A empresa também pediu a suspensão nacional de processos sobre o tema enquanto o STF não chega a um veredicto final.

No último dia 5 de dezembro, a 14ª Turma do TRT-2, por 2 votos a 1, reforma a decisão de primeira instância e reconhece o vínculo empregatício entre entregadores e o iFood, considerando a hora trabalhada como base para o cálculo. A empresa foi condenada a pagar R$ 10 milhões por danos morais coletivos.

A resposta do iFood à decisão do TRT2

O iFood anunciou que irá recorrer da decisão, destacando que o julgamento "destoa de entendimentos recentes do STF e do próprio TRT2". 

A empresa considera que o modelo proposto é inviável e prejudica a competitividade do setor de delivery, além de não refletir a dinâmica flexível e autônoma do trabalho por aplicativos.

Em nota, o iFood também alertou para os riscos que a decisão traz para o setor, como aumento de custos operacionais e a criação de assimetrias no mercado. A empresa defende a construção de um marco regulatório que garanta direitos aos trabalhadores sem impor o vínculo empregatício, preservando a sustentabilidade do modelo de negócios.

Vale ressaltar que, caso o vínculo empregatício seja reconhecido, alguns direitos garantidos por lei podem ser aplicados, como 13º salário, férias acrescidas de 1/3 do salário, adicional noturno, horas extras, FGTS e repouso semanal remunerado.

Decisões similares envolvendo outras plataformas

Loggi – Reconhecimento de vínculo e posterior suspensão

Em dezembro de 2023, a 8ª Vara do Trabalho de São Paulo reconheceu o vínculo empregatício entre entregadores e a plataforma Loggi, condenando a empresa a pagar R$ 30 milhões em indenizações. A decisão, no entanto, foi suspensa pelo TRT2 no mesmo mês, sob o argumento de que a análise definitiva caberia às instâncias superiores.

Uber – Caso de repercussão geral no STF

A Uber enfrenta um recurso no STF contra a decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que reconheceu o vínculo empregatício entre a empresa e um motorista. O caso foi incluído como de repercussão geral (Tema 1291) e deverá trazer um entendimento definitivo para situações semelhantes em todo o país.

Rappi – Decisão individual no TRT2

Em setembro de 2024, o TRT2 reconheceu o vínculo empregatício entre um entregador e a Rappi em uma ação individual. Essa decisão foi utilizada como referência no julgamento da Ação Civil Pública contra o iFood.

99 – Decisão contrária ao vínculo no TRT2

Poucos dias antes do caso iFood, a 1ª Turma do TRT2 decidiu pela inexistência de vínculo empregatício em uma ação semelhante movida contra a 99.

O julgamento destacou a flexibilidade do modelo de trabalho como incompatível com a relação empregatícia.

Próximos passos e impactos no setor

Com o recurso anunciado pelo iFood, o caso ainda pode ser levado ao Tribunal Superior do Trabalho (TST) e ao STF. Enquanto isso, o setor de aplicativos aguarda a regulamentação proposta no Congresso Nacional, que pode trazer mais segurança jurídica para empresas e trabalhadores.

A decisão do STF no caso da Uber, prevista para os próximos meses, será determinante para consolidar um entendimento uniforme sobre o tema. Até lá, o setor continuará enfrentando incertezas, com possíveis impactos econômicos e sociais.